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2017 Junho – A REABILITAÇÃO URBANA E A TRANSFORMAÇÃO DO TECIDO CONSTRUÍDO E SÓCIO-ECONÓMICO DO CENTRO DO PORTO

Na Europa, há já algumas décadas que se assiste a uma vaga de “reabilitação urbana” que se traduziu na realização  de um conjunto de obras importantes, com discussões técnico-científicas e  normativas legais, que foram da escalpelização dos conceitos à evolução de técnicas  construtivas, da recuperação de saberes-fazer e de materiais antigos, etc. Esta situação teve origem, em primeiro lugar, nas grandes destruições verificadas com as guerras mundiais do século XX, sobretudo na Europa, nomeadamente pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, mas também está relacionada com a ocorrência de fenómenos naturais como os terramotos, cujos efeitos são devastadores. Felizmente, Portugal não foi muito fustigado com problemas desta gravidade.  Assim, no Porto e, de um modo geral, em todo o país, o território foi-se mantendo, mais ou menos inalterado e, em muitas áreas da cidade, nomeadamente no seu casco antigo, a ruina foi-se paulatina, mas duradouramente, instalando.
Ora, a dinâmica de reabilitação urbana em Portugal. de um modo geral, e na cidade do Porto em particular, surgiu já mais tardiamente, como uma actividade que se deveu sobretudo a movimentações  sócio-económicas, de que a mais recente é o desenvolvimento provocado pelo fenómeno do Turismo, com o papel predominante de fenómeno de massas. Agora, perante várias intervenções já realizadas, algumas bastante criticáveis, verifica-se que a reabilitação urbana começa finalmente a ser discutida para lá do âmbito académico mais estrito. Com efeito, por um lado, existe uma crescente atenção da parte dos diversos órgãos de informação, ao mesmo tempo que, por outro, este se tornou tema de debate em tertúlias de variadíssimas instituições, grupos de reflexão e opinião, quer sobre o âmbito do conceito, mas também sobre as realizações que se foram multiplicando.
Em Circulares anteriores,  os “Amigos do Porto” falaram já um pouco deste fenómeno que se tornou por demais evidente no Porto nos últimos anos, especialmente no tecido do “Centro Histórico” da cidade (ou nos Centros principais), que viu nas últimas décadas envelhecer não só o seu edificado mas também o seu tecido social e a vitalidade cultural e económica que o caracterizavam. Houve, por vezes, razões diferentes para este declínio do centro do Porto, que não têm todas as mesmas origens, mas que, todavia, coincidem, em grande parte, espacialmente. Em toda esta situação, e no grande investimento realizado para ultrapassar o estado de ruina, encontramos o Turismo como o grande motor desta retoma, deixando por vezes pelo caminho memórias, a qualidade de vida dos que aí habitavam e a qualidade técnica que este tipo de intervenções exige.
O Turismo, para além de ser uma actividade rendosa, é muito volátil, sujeita às variações conjunturais, pelo que tem de ser cuidadosamente acompanhada de medidas para, num horizonte de médio e longo prazo, não vir a haver alguns malefícios graves.  Por isso, tanto se tem falado e escrito acerca de recorrentes erros como o chamado “fachadismo” (destruir o interior dos edifícios históricos, deixando apenas as fachadas), da mono funcionalidade de uso do edificado que, a prazo, mata a vida urbana (excesso de concentração de Hoteis e Alojamentos Locais, por ex.), com a deslocalização de habitantes e de actividades económicas locais associadas à vida quotidiana da comunidade que vão sendo gradualmente substituídas por outras actividades, que se julga serem mais adequadas ao gosto dos turistas e, consequentemente, mais lucrativas, etc. Estes e outros aspectos podem ser analisados caso a caso, focados, discutidos e melhorados.
Como referido antes, acerca do recente “boom”  de hotelaria e similares no centro do Porto, já têm sido deixadas algumas referências às principais preocupações que envolvem este fenómeno em textos publicados em anteriores Circulares dos “Amigos do Porto”. Contudo, julgamos que há ainda muito a dizer acerca, por exemplo, das Lojas com História, da sua relevância e significado actual e das inquietações e perplexidades que suscitam algumas dinâmicas recentes, despoletadas pelo ímpeto de renovação e de reabilitação urbana na Baixa do Porto.
Por esse motivo, parece-nos importante desenvolver no futuro este tema das lojas históricas do Porto, de modo a deixar suficientemente claro o que julgamos dever ser feito, ou tornado público se já estiver em curso de ser realizado: uma estratégia que interligue componentes que podem existir, no todo ou em parte, nestes espaços, e que inclui valores históricos/arquitectónicos e valores culturais/económicos que, por vezes, contradizem-se e/ou complementam-se. Recorde-se que na cidade do Porto o comércio é um valor particularmente emblemático, estando presente ao longo de toda a sua História. Logo, os locais de trocas comerciais têm aqui uma expressão própria e singular que, necessariamente, deve ser acautelada, preservada, valorizada e interpretada. Citando um recente texto, acerca destas mesmas questões em Lisboa, para dar corpo a uma estratégia municipal de valorização das suas lojas históricas é necessário compatibilizar interesses e preocupações diversas, de modo a “…preservar e salvaguardar os estabelecimentos e o seu património material, histórico e cultural e, por outro lado, dinamizar e reactivar a actividade comercial, essencial para a sua existência…”.
Margarida Santos Coelho (Circular nº. 5/2017)

 

-2017 Outubro – A IGREJA DE S. FRANCISCO

Há quanto tempo não entra na Igreja de S. Francisco? E, no entanto, é das poucas jóias que sobreviveram ao cataclismo que foi para o património da cidade o século XIX. Tanta de ser re obra de arte aniquilada, tanto pelas guerras como em nome de ideais progressistas, por gente cega pela raiva contra a igreja, incapazes de apreciar verdadeiras obras de arte. Como escreveria Magalhães Basto, a propósito da Igreja do convento dos dominicanos e da Igreja dos Terceiros de S. Domingos: “Assim desapareceram os dois edifícios que o espírito dominicano fizera surgir no Porto. Ficámos mais pobres. E o anticlericalismo façanhudo nada ganhou.” A este propósito, será interessante saber-se que a destruição da Igreja dos Terceiros foi começada pelo desembargador Ferreira Borges com um grupo de operários da Câmara com o pretexto da abertura de uma rua a que haveriam de pôr o nome de «Ferreira Borges»! Às vezes o crime compensa… A Igreja de S. Francisco escapou por pouco. Quiseram decepar-lhe a capela-mor, mas os protestos fizeram a Câmara recuar. Mesmo assim cometeram o sacrilégio de tapar parte da fachada principal… a tudo resistiu a velha igreja que, dentro das suas fortes paredes de granito, guarda um verdadeiro tesouro. (Em tempos, houve um empreiteiro que se ofereceu para, gratuitamente, limpar toda a talha e voltar a dourá-la. Nesta terra há tanto benemérito incompreendido!…)
Numa noite deste último verão, fui assistir a um concerto de órgão e canto na Igreja de S. Francisco promovido pela Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis do Porto e fiquei deslumbrado com tanta beleza. Já conhecia o interior da igreja à luz que as suas janelas deixam entrar, mas, devo confessar, conseguiram com a iluminação eléctrica proporcionar ao concerto um cenário de grande beleza. As imagens, no seu cismar de vários séculos, contemplam  as gerações que os vão visitando sem cuidar do trabalho e da arte que ali está de tantos artífices que gastaram longas horas das suas vidas com o único fito de nos deixarem este legado espantoso. A música, ressoando por aquelas arcadas e abóbadas, ainda mais exaltava todo aquele esplendor, inspirado num tributo a algo mais alto e eterno.
Há notícia da presença dos frades franciscanos no Porto já em 1223, mas a existência de novos conventos na cidade foi sempre motivo de contestação por parte das autoridades eclesiásticas da cidade que não gostavam de ver aumentar a concorrência, não por motivos religiosos, mas económicos. à semelhança do que viria a acontecer com os Clérigos que viram as obras da sua igreja serem sabotadas por instigação de um pároco, a vida dos franciscanos foi dificultada e, não fora a intervenção de Inocêncio IV em 1244, os religiosos ter-se-iam visto em grande aperto para edificarem o seu convento. Por ordem do Papa, o Arcebispo de Compostela veio ao Porto benzer a primeira pedra e para os valer nas dificuldades com que se debatiam. Em 1249, nova Bula do Papa incentivava fieis e religiosos a continuarem a apoiar as obras e desta vez encontrou a colaboração dos bispos, especialmente de D. Sancho Pedro. Também D. Fernando I foi protector dos franciscanos, mas, logo que morreu, D. Leonor Teles apressou-se a revogar as disposições do rei nesse sentido.
A melhoria da situação dos frades levou-os a ampliar a primeira igreja que era apenas de uma nave para a actual de três naves e transepto. Segundo Magalhães Basto, “é lícito concluir que a obra da Igreja de S. Francisco é do século XIII, pois estava terminada já no primeiro quartel do século XIV, exactamente como a dos dominicanos.”  As três naves são cobertas com telhado. Apenas a abside e os absidíolos têm abóbadas de nervuras. A frontaria apresenta uma formosa rosácea. Não se sabe como seria o portal primitivo, mas o actual é do século XVII ou XVIII e será proveniente do Convento de Monchique. A capela mor foi fundada por João Rodrigues de Sá, primeiro Alcaide mor do Porto (1392) que nela está sepultado.
A igreja foi sofrendo diversas alterações, a última no século XVIII (época barroca) em que foram construídos os principais retábulos de talha dourada. De toda a riqueza que a igreja encerra serão de salientar: a pintura mural alusiva à Senhora da Rosa, do século XV, atribuída a António de Florentim, pintor régio de D. João I e uma das mais antigas do  País e o retábulo com a árvore de Jessé, “sendo a maior e mais rica versão conhecida devido à grande complexidade de ramagem e densidade de folhas” (SIPA). Foi reconstruida por Filipe da Silva e António Gomes entre 1718 e 1721 a partir de uma obra mais antiga.
Lopes Martins (Circular  nº. 6/2017)